“A agricultura é a arte de guardar o Sol”, diz um antigo provérbio chinês. Durante mais de 40 séculos, os chineses aprenderam a conviver com a terra aliando a produção de alimentos com a manutenção da fertilidade do solo, fonte de toda a vida e abundância. Estas práticas foram brilhantemente descritas por Franklin Hiram King, em 1911, em seu livro, Farmers of Forty Centuries: Organic Farming in China, Korea, and Japan.
Os chineses, um povo inteligente, observador e sempre muito ligado aos ciclos naturais, aprenderam a importância da manutenção da fertilidade do solo como fator decisivo para sua sobrevivência e sua cultura. A fórmula essencial para tal era a de devolver à terra toda a matéria orgânica possível. Enquanto a matéria orgânica retornasse ao solo, e esse ciclo fosse perpetuado, estavam garantidas as safras abundantes e a manutenção dos agricultores em suas terras. Sem conhecer o processo da fotossíntese, intuíam que o Sol era o grande doador de energia, que viabilizava o crescimento das plantas e a produção de matéria orgânica, fonte da vida. [1]
Em outras partes do mundo, incluindo no Brasil, diversos povos também aprenderam a conviver de forma harmônica com a terra, extraindo dessa apenas o que essa era capaz de repor, e desenvolvendo um profundo senso de ligação e respeito para com a natureza que os nutria e sustentava. Enquanto as civilizações se percebiam como parte integrante da natureza, e dela dependentes, o equilíbrio era mantido e a vida se desenvolvia de acordo com seus ciclos naturais de criação, morte e regeneração. Enquanto a sacralidade da Terra e da Natureza eram respeitadas, a vida se perpetuava.
Entretanto, alguns povos, já na antiguidade, desenvolveram modelos de agricultura e exploração de recurso naturais que eram insustentáveis, e que fatalmente os levaram ao declínio e, eventualmente, ao desaparecimento de suas sociedades. Ao longo de milênios, a humanidade acreditou na falsa premissa de que os recursos naturais, em face de sua abundância, eram inesgotáveis. Assim, podiam ser explorados e consumidos sem limites. E isso levou muitas civilizações do passado perecerem pelo esgotamento dos recursos naturais à sua volta.
Na segunda metade do século XIX, com as descobertas da ciência, o ser humano passou a acreditar que dependia cada vez menos da natureza, de seus ciclos decomposição da matéria orgânica, e que poderia substituí-los por produtos da emergente indústria química.
Mas foi com o fim da Segunda Guerra, quando o grande parque de indústria química e mecânica dos Estados Unidos se viu ameaçado perante o risco de sua ociosidade, é que foi lançada a “Revolução Verde” (1950 - 1960).
A indústria que havia sido criada para abastecer as tropas com armas, tanques, aviões, explosivos e munições, estaria diante da possibilidade de não ter mais o que fazer. Assim tinham que direcionar seu parque industrial para uma nova função.
Esse foi o marco da agricultura industrial moderna, baseada em seis pilares:
monoculturas;
sementes melhoradas geneticamente e híbridas;
adubos químicos;
agrotóxicos;
irrigação;
máquinas agrícolas.
O solo deixou de ser um elemento vivo, e passou a ser tratado apenas como um mero suporte para as plantas, que somente cresceriam se recebessem as doses prescritas de adubos químicos.
Neste processo, os humanos foram desenvolvendo plantas cada vez mais dependentes, que não conseguiriam sobreviver sem a mão do homem e suas doses, cada vez mais elevadas, de adubos químicos e agrotóxicos. E para eliminar a competição com outras plantas, essas culturas precisavam também de herbicidas, que eliminam as chamadas “plantas invasoras” (um processo natural de regeneração do solo) e contaminam solo, água e alimentos.
Mas, talvez, dentre os maiores erros da agricultura industrial “moderna”, está a manutenção de solo nus expostos ao sol, vento e chuva, bem como a “independência” artificial da matéria orgânica criada pelos adubos químicos. No momento em que os homens pararam de repor a matéria orgânica no solo, começou a sua grande dependência técnica e financeira da indústria química. Ao mesmo tempo, a degradação do solo, a perda de fertilidade natural e a desertificação passaram a ser um problema de escala global.
Por fim, esse ciclo de exposição do solo ao sol e intempéries, uso intensivo de adubos minerais artificiais e a grande de carga de agrotóxicos, fungicidas e herbicidas que funcionam como biocidas, levou ao esgotamento da matéria orgânica e da vida no solo. Organismos do solo, benéficos para as plantas, como bactérias, fungos, algas, minhocas, etc. foram eliminados com praticas da agricultura industrial o que, por sua vez, fez surgir uma série de pragas e doenças que atacam plantas malnutridas e desequilibradas. E, naturalmente, no pacote industrial, essas pragas e doenças precisam ser combatidas com agrotóxicos.
O solo, no espaço de algumas décadas, perdeu progressivamente sua fertilidade natural.
Outra fragilidade da agricultura industrial moderna é que ela é muito instável, ou seja, não se suporta de forma natural. Para contrabalançar a lei natural da entropia, na qual o universo tende à desorganização (e à diversidade), o homem precisa investir muita energia (e recursos financeiros) para manter as plantas em um estado, artificial, não natural.
Além de grande dependência do sistema financeiro, a agricultura industrial é também fortemente dependente do petróleo e seus derivados, o que pode significar um risco para o futuro, no qual as reservas de petróleo entrem em declínio.
Embora as vantagens da agricultura industrial moderna com bases científicas, sejam inegáveis quando se trata de produzir quantidades de alimentos para atendimento da demanda da população mundial crescente e garantir a segurança alimentar, esse modelo não se preocupou com questões ambientais fundamentais.
Seguindo este modelo, à medida em que cresceu a produção de alimentos, cresceu também a degradação ambiental, como se essa fosse uma consequência inevitável e irremediável. A agricultura “moderna” é insustentável e desrespeita outras formas de vida.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que crescia a agricultura industrial, cresciam também as vozes que conseguiam antever os seus problemas e que buscavam desenvolver métodos agrícolas mais baseados na manutenção da matéria orgânica, e dos ciclos naturais, de água, carbono, nitrogênio e fósforo, buscando resgatar e evoluir práticas que já tinham se mostrado eficientes para manutenção da humanidade no passado, principalmente pela sua capacidade de manutenção da fertilidade do solo.
Assim cresceu ao longo do século XX um conjunto de teorias e práticas de agricultura orgânica e regenerativa. Alguns nomes foram formando o caminho da agricultura orgânica como Albert Howard e Gabrielle Mathaei (Método Indore de compostagem), Rudolph Steiner (Agricultura Biodinâmica), Mokiti Okada (Agricultura Natural), Lady Eve Balfour (Movimento Orgânico), Masanobu Fukuoka (Agricultura Natural), Bill Molison e David Holgren (Permacultura). Mais recentemente, no Brasil, Ana Primavesi (Agroecologia) e Ernst Göetsch (Agricultura Sintrópica).[2]
Todos estes pensadores, aliados às práticas ancestrais de agricultura sustentável, bem como aos avanços científicos nos campos da biologia, ecologia e agricultura, foram criando as condições para o surgimento de um novo modelo de produção agrícola, hoje conhecido como Agroflorestas ou Sistemas Agroflorestais (SAF) [3].
A partir do melhor conhecimento dos processos de regeneração natural, ou sucessão ecológica, agricultores e cientistas foram estabelecendo uma nova visão de prática agrícola, que reproduzia esse processo natural.
Basicamente, uma Agrofloresta é um sistema que reúne espécies de interesse agrícola (frutas, verduras, legumes, grãos, forrageiras, etc.) em consórcio com espécies florestais nativas ou exóticas (árvores, palmeiras, arbustos). As diversas espécies de plantas são manejadas para aproveitar diferentes estratos de altura e assim maximizar a fotossíntese e a produção de alimentos. Esse sistema sustentável de produção, além dos benefícios de produção de alimentos, permite ainda a regeneração do solo e ambiente, com um significativo aumento da biodiversidade.
Os princípios básicos dos SAFs são:
Aumentar da biodiversidade para reestabelecer o equilíbrio natural dos sistemas e sua resiliência, ao contrário das monoculturas da agricultura industrial;
Cultivar plantas, anuais e perenes, em consórcio, incluindo uma maior diversidade de espécies de interesse agrícolas em conjunto com árvores, para promover o sombreamento e a produção de biomassa;
Aumentar a produção de biomassa, com consequente sequestro de carbono da atmosfera;
Incorporar e acumular, de forma intensiva, matéria orgânica no solo para recuperação de fertilidade, melhora de sua proteção, bem como da capacidade de retenção de água;
Regenerar a vida de microrganismos do solo para aumento do equilíbrio e da simbiose planta / microrganismos e consequente saúde das plantas;
Restabelecer os ciclos naturais de água, carbono, nitrogênio e fósforo, para restauração da fertilidade;
Restabelecer as formas de cooperação e simbiose natural e de interações ecológicas benéficas entre plantas e outros seres vivos [4];
Utilizar o processo de sucessão ecológica natural, associando diferentes espécies de plantas, no tempo e no espaço, com alta diversidade e densidade, ocupando diversos estratos da vegetação florestal.
Conhecer e cooperar com as forças e leis naturais, ao invés de buscar subjugá-las ou lutar contra elas.
Como principais benefícios das agroflorestas, podem ser citados:
Aliar a produção de alimentos com a regeneração ambiental;
Obter produtos florestais madeireiros e não madeireiros (castanhas, frutas, resinas, óleos, remédios, fibras, etc.);
Melhorar a fertilidade e reduzir a erosão do solo;
Sequestrar carbono da atmosfera e contribuir para mitigação dos efeitos da crise climática;
Melhor a qualidade e a quantidade de água em mananciais;
Reduzir a necessidade de insumo industriais como adubos e agrotóxicos;
Ajudar na conservação da biodiversidade da fauna e flora nativas;
Ajudar na recuperação de áreas degradas;
Fixar a população no campo e reduzir o êxodo rural;
Adequar propriedades rurais ao código florestal;
Reduzir o ataque de pragas e doenças.
Conclusão
De forma geral, os sistemas agroflorestais são mais produtivos do que os sistemas convencionais, com um custo significativamente inferior de insumos da indústria. Entretanto, sendo um paradigma de agricultura diferente, de baixo insumo industriais e alta diversidade, eles não se aplicam a produção de grãos ou animais em larga escala, como os sistemas convencionais da agricultura industrial.
Aplicam-se principalmente à pequenas e médias propriedades, que hoje são responsáveis por cerca de 70% da produção de alimentos para consumo humano no Brasil.
Os sistemas agroflorestais, mais do que um método de produção eficiente e resiliente, procuram resgatar a percepção de interdependência e interconexão de todos os seres vivos e elementos inanimados do ambiente.
São uma resposta muito eficiente da agricultura para os problemas de crise climática, e uma das melhores alternativas para recuperação de áreas degradadas e desertificadas. Por outro lado, ele é também mais eficiente para fixação de agricultores no campo e produção de uma grande diversidade de alimentos.
Então, parece que levamos alguns milênios para reaprender o que alguns povos ancestrais já sabiam. Mas cada lição reaprendida, nunca é a mesma, e nos torna mais sábios.
FONTES E REFERÊNCIAS
Artigos
[1] Como as Árvores podem nos ajudar - Rizzo, Victor
[2] Wikipedia - Organic farming - https://en.wikipedia.org/wiki/Organic_farming
[3] Wikipedia - Agroflorestas - https://pt.wikipedia.org/wiki/Agrofloresta
[4] Da Exploração à Simbiose - Rizzo, Victor
Livros
[1] Farmers of Forty Centuries: Organic Farming in China, Korea, and Japan - King, Franklin
[2] The One-Straw Revolution - Fukuoka, Masanobu
[3] Manejo Ecológico do Solo - Primavesi, Ana
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